36 – A vaguidão específica

Millôr Fernandes

“As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica.”

                                                                                              Richard Gehman

 –   Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte. 

 –   Junto com as outras? 

 –   Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia. 

 –   Sim senhora. Olha, o homem está aí. 

 –   Aquele de quando choveu? 

 –   Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo. 

 –   Que é que você disse a ele? 

 –   Eu disse pra ele continuar. 

 –   Ele já começou? 

 –   Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse. 

 –   É bom? 

 –   Mais ou menos. O outro parece mais capaz. 

 –   Você trouxe tudo pra cima?

 –   Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera. 

 –   Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite. 

 –   Está bem, vou ver como. 

O texto acima é do livro “Lições de um ignorante” do Millôr Fernandes apesar de constar também em vários sites da Internet. Dentre os visitados achei muito interessante o comentário abaixo no site “www.meslva.com”.

Comentário:

No texto “A Vaguidão Específica”, Millôr Fernandes elabora sua sátira com base nas formas vagas com que se pode comunicar usando os pronomes. Percebe-se que há duas mulheres, mas não fica clara sua relação (patroa e empregada, mãe e filha), nem o assunto do qual tratam. O motivo do riso reside nos elementos que foram usados pelas personagens como uma maneira do autor reforçar a sua tese sobre a imprecisão do discurso. Enquanto texto, traz características da linguagem oral, seja em reduções (“Eu disse pra ele continuar”) ou no uso de alguns termos usados pelas personagens (“isso”, “outras”, “coisas”) cujas referências os leitores não recuperam porque não há referências contextuais ao diálogo. Contudo, a “vaguidade” das palavras não interfere na compreensão do diálogo por parte do leitor.

Mesmo que se compreenda a língua, nenhum leitor será capaz de dar um maior sentido aos termos utilizados para indicar objetos (“isso”, “outras”, “coisas”), lugares (“lá fora”, “qualquer parte”, “pra cima”), pessoas (“alguém”, “aquele”, “outro”), tempo (“outro dia”). Quando uma das personagens fala “Maria, ponha isso lá fora em qualquer lugar”, não há referencial para se saber o que seria “isso”. E quando ela afirma: “Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia.” Como ela usa o pronome indefinido invariável “alguém” não se pode saber quem, apenas se sabe que se ela colocar as “coisas” junto com as “outras” que também não estão especificadas, “alguém” pode pegar e querer fazer “coisas” com elas, “Ponha no lugar do outro dia”, sabemos que ela deve colocar as “coisas” em algum lugar, mas como não sabemos qual foi o lugar do outro dia então não se pode inferir que lugar é este. Como efeito, eles indicam algo que as personagens conhecem, mas cuja compreensão não é dada ao leitor. E, ao contrário do que preconiza Millôr, essa característica de usar termos que não dizem qual é o referente, mas apontam para ele, é uma escolha de qualquer indivíduo que interaja comunicativamente.

No texto de Millôr Fernandes, o leitor é desafiado a compreender não apenas o contexto de toda a narrativa, mas principalmente que as personagens em si se entendem sem um referencial explícito para o leitor. O escritor ironiza o discurso feminino ao descrevê-lo como vago e impreciso, ao mesmo tempo em que demonstra um preconceito em relação aos papéis de homens e mulheres na comunicação. O que se confirma, no entanto, é a presença de um texto coeso, uma vez que as personagens mostram esclarecimento dentro de seu diálogo.

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